04/03/2010

Ardências

Ardências foi criada para o blog Caneta, Lente e Pincel tornando-se uma peça com o texto de Vivian Pizzinga.

É feita sobre um texto (resultando irreconhecível) e live-electronics (filtros comb, delays e RM). Após o live-electronics, foram utilizados duas RM com frequências móveis.


Descarregar mp3


A moça estava deitada na cama. Fitava o não-sei-onde mais acima, rodeada de não-sei-quantos por todos os lados. O que havia perto de si – embora ela não conseguisse visualizar bem onde, nem atinar ao certo o porquê – era um multidãozinha de pequenos elementos pretos, que se reunia de modo caótico para quem olhava de fora, de cima e de viés. A diminuta aglomeração discutia aquilo que a moça não conseguia compreender nem plena nem parcialmente. Eram formigas, talvez. Piolhos, quem sabe. Joaninhas desprovidas de bolinhas, possivelmente. Eram insetos eloqüentes, com toda a certeza. Encontravam-se ao pé da cama, onde a moça, deitada, tentava esquecer o que comprimia suas têmporas. A dor de cabeça aumentava e era quase uma enxaqueca, porque a multidãozinha intensificava seu furor, numa relação diretamente proporcional ao incremento da dor. Aqueles bichos escuros discutiam acerca de matérias improvisadas que a moça nunca adivinharia.

O furor era crescente, pois havia discordância, dissonância, discrepância. A moça abriu os olhos na sombra do quarto lacrado com cortinas e portas bem cerradas. Virou-se para o lado, disfarçadamente, e enxergou o chão. O que antes era carpete bege e macio agora estava coberto de negror e aspereza. Eram milhões de formigas alvoroçadas, gritando em suas vozes agudas e perturbadoras, e quanto mais elas debatiam, e quanto mais suas patas se moviam, e quanto mais o chão brilhava, mais as têmporas da moça achatavam seu rosto, que agora se tornava fino e oblongo.

A verdade é que a moça não queria saber dos assuntos alheios, não queria saber das idéias próprias, e tampouco que dia era aquele. Estava cansada e aflita por saber-se povoada em seu próprio quarto, sem contar que o odor proveniente da sonoridade das formigas era algo da ordem do nojento. Dor, odor e som misturavam-se e retorciam-se, e a enxaqueca era agora uma parede compacta que extraía os pensamentos da moça em desespero em desalinho em desconforto.

A moça tentava encontrar uma posição. As formigas ovais percutiam o chão, a moça sentia as pancadas das opiniões desarranjadas que iam perfurando seus tímpanos, os insetos moviam-se pra lá e pra cá e era pra lá e pra cá que a moça não conseguia inserir-se na cama e já os insetos posicionavam-se de modo belicoso e já a moça puxava o lençol e os insetos estavam nervosos a moça estava pra morrer os insetos eram agora urgentes a moça sabia-se solta os insetos chegavam a um consenso a moça rolava no próprio suor os insetos construíram um dispositivo ininteligível a moça escutava as marteladas os insetos queriam mais a moça escutava as marteladas a moça reprimiu um berro a moça escutava as navalhadas os insetos aplaudiram os insetos ovacionaram os insetos vibraram a moça suspirou os insetos acalmaram-se a moça alarmou-se os insetos esperavam a moça deslizou em sua ardência e a ardência aumentou ainda mais a ardência fez queimar os tendões da moça e o juízo dos insetos a moça chorou ardências incontáveis incontestes inquietas e intranqüilas ardências tomaram conta de seu corpo inteiro de seu corpo incerto de seu corpo imerso em insetos ensopados de saliva cuspe saliva cuspe os insetos a moça os insetos a moça a moça a moça ardia a moça, A moça virou-se para o lado, ardia o lado, ardia a cama, e tacou o travesseiro sobressalente sobre a cabeça que era agora um cilindro frágil e disforme, apertou os olhos no intuito de apalpar a escuridão e esperou que as formigas fossem embora. As ardências escorreram para fora da cama e quicaram pra longe.

As formigas – ou piolhos - ou baratas - ou besouros - ou traças - ou joaninhas sem bolinhas – ou marimbondos enfezados - fizeram o sinal da cruz, ordenaram-se em fila, calaram a boca e foram embora. E tudo isso sem olhar para trás.

Texto: Vivian Pizzinga.

Sem comentários: