avalanche foi criada para o blog Caneta, Lente e Pincel tornando-se uma peça com o texto de Danielle Costa.
“Tive um sonho estranho essa noite. Quer ouvir?”, ela disse titubeante, insegura já no seu primeiro gesto daquela manhã de segunda-feira.
“Quero, sim, amor, com certeza”, ele respondeu dando-lhe um beijo suave, “mas não posso agora, preciso sair correndo pro trabalho”, continuou enquanto bebia rapidamente um gole de café com leite.
Eram recém casados. Ela ainda se esforçava para parecer interessante, olhava pra ele, fingindo estar desvendando algo desconhecido até dele próprio. Contudo, ignorava que esses gestos passavam despercebidos e eram vistos por ele como um peculiar jeito de ser. Já eram tão rotineiros que ele nem imaginava que ela fazia qualquer esforço para agir assim. Ele, por sua vez, tentava acreditar que pouca coisa havia mudado naquelas primeiras semanas de casamento.
“Depois do trabalho vou visitar uma amiga”, ela disse desinteressadamente.
“Bem, posso pegar você a hora que quiser”, ele, saindo, completou, “me liga durante o dia”.
Ela ainda ficou algum tempo vivenciando a sensação de estarem juntos. Hoje, particularmente, ele parecia muito à vontade com o fato de estar casado. À vontade demais, ela pensava, tentando encontrar nele ao menos alguma parcela do esforço que ela própria fazia para surpreendê-lo.
Seus dedos brincavam com um elástico de cabelo, e sua imaginação esticava o tempo como ela fazia com aquele pequeno objeto em suas mãos. Pensou no sonho da noite anterior e na sensação de ausência de identidade que tivera ao acordar. E aquele pensamento desencadeou uma avalanche em sua cabeça. Pensava em quanto tempo seria preciso para aquele elástico arrebentar. Teve medo de viver um dia igual ao outro, igual ao outro e igual ao outro, todos os dias seguintes de sua vida até que ela própria arrebentasse, assim como o elástico. Pensou em seus amigos e que seus amigos sumiriam, dando lugar à privacidade de sua vida de casada. Teve medo do telefone não tocar. E nenhum amigo mais chamá-la pra sair. Teve pavor de uma solidão que não sabia de onde vinha porque estava cercada de pessoas, no trabalho, na família, filhos que teria após um ou dois anos de casada. Teve medo de tudo dar errado. Via-se andando de um lado pro outro no pequeno apartamento, tentando arrumar um canto em que pudesse estar sozinha com os mesmos pensamentos que não mais a largariam desde esse dia em que brincava com o elástico de cabelo após tomar café sozinha.
Guardou o leite e o requeijão na geladeira e escovou os dentes, vestiu-se para trabalhar e recebeu uma mensagem em seu celular:
“01/04/2008. 10:25. Com o que você sonhou?”, as letras sobre o fundo azul remetiam à breve lua-de-mel sob o céu de Lisboa.
Ela sentou no sofá vermelho que comprara numa ponta de estoque e minutos depois no celular dele o desenho de um envelope que se abria mostrando o seguinte texto:
“01/04/2008. 10:37. Sonhei que eu deixava você”.
Ela pegou o elevador, sentindo-se escorregar numa poça de neve derretida.
O celular vibrou novamente.
“01/04/2008. 11:05. Não vou deixar que faça isso”.
E, tendo respondido sua mensagem, ele não mais pensou no sonho dela durante o resto do dia, como se tudo estivesse apenas em suas próprias mãos. Para ela, o mais difícil foi fingir que nada acontecia dentro de si mesma quando o que sentia era semelhante a estar rolando precipício abaixo.
Às oito e quarenta ele chegou em casa e acendeu a luz da sala. Tirou os sapatos e as meias pretas. Tirou a gravata e pensou que estava com sede. No celular, viu que havia outro envelope a ser aberto:
“01/04/2008. 19:19. Certezas me amedrontam”.
Ele procurou nas mensagens enviadas o que havia dito antes, mas não conseguiu entender o que ela pensava exatamente. Ligou pra ela, mas a ligação era encaminhada para a caixa de mensagens. Ligou outra vez e outra vez. Não ouvia sua voz desde aquela manhã.
Bebeu um copo de água gelada, pensando onde ela poderia estar àquela hora, o que fazia ou por que não havia ligado pra ele durante o dia inteiro. Por um momento teve medo de ser tudo um sonho apenas. Pensou se aquilo já era sofrer.
Pegou no chão o elástico de cabelo arrebentado que ela usava pela manhã.
Ele mexia no elástico remendando-o como a um fio rebelde numa roupa nova, quando as chaves dela balançavam na fechadura, abrindo a porta de entrada. Nesse momento, lembrou-se que ela iria visitar uma amiga. Nesse momento, ela percebeu que sentia falta da voz dele lhe dizendo qualquer coisa e não sabia o que fazer com aquela saudade.
Ele disse, quer comer alguma coisa? E ela sentiu um alívio tão grande que o beijou demoradamente.
E naquela noite, na primeira noite após a lua-de-mel, depois de um dia inteiro separados um do outro, sem ter certeza de quase nada e no meio de uma avalanche de temores, perplexidades e incongruências, os dois se beijaram e se amaram até o amanhecer. E perceberam que isso apenas bastava.
Texto por Danielle Costa.
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“Tive um sonho estranho essa noite. Quer ouvir?”, ela disse titubeante, insegura já no seu primeiro gesto daquela manhã de segunda-feira.
“Quero, sim, amor, com certeza”, ele respondeu dando-lhe um beijo suave, “mas não posso agora, preciso sair correndo pro trabalho”, continuou enquanto bebia rapidamente um gole de café com leite.
Eram recém casados. Ela ainda se esforçava para parecer interessante, olhava pra ele, fingindo estar desvendando algo desconhecido até dele próprio. Contudo, ignorava que esses gestos passavam despercebidos e eram vistos por ele como um peculiar jeito de ser. Já eram tão rotineiros que ele nem imaginava que ela fazia qualquer esforço para agir assim. Ele, por sua vez, tentava acreditar que pouca coisa havia mudado naquelas primeiras semanas de casamento.
“Depois do trabalho vou visitar uma amiga”, ela disse desinteressadamente.
“Bem, posso pegar você a hora que quiser”, ele, saindo, completou, “me liga durante o dia”.
Ela ainda ficou algum tempo vivenciando a sensação de estarem juntos. Hoje, particularmente, ele parecia muito à vontade com o fato de estar casado. À vontade demais, ela pensava, tentando encontrar nele ao menos alguma parcela do esforço que ela própria fazia para surpreendê-lo.
Seus dedos brincavam com um elástico de cabelo, e sua imaginação esticava o tempo como ela fazia com aquele pequeno objeto em suas mãos. Pensou no sonho da noite anterior e na sensação de ausência de identidade que tivera ao acordar. E aquele pensamento desencadeou uma avalanche em sua cabeça. Pensava em quanto tempo seria preciso para aquele elástico arrebentar. Teve medo de viver um dia igual ao outro, igual ao outro e igual ao outro, todos os dias seguintes de sua vida até que ela própria arrebentasse, assim como o elástico. Pensou em seus amigos e que seus amigos sumiriam, dando lugar à privacidade de sua vida de casada. Teve medo do telefone não tocar. E nenhum amigo mais chamá-la pra sair. Teve pavor de uma solidão que não sabia de onde vinha porque estava cercada de pessoas, no trabalho, na família, filhos que teria após um ou dois anos de casada. Teve medo de tudo dar errado. Via-se andando de um lado pro outro no pequeno apartamento, tentando arrumar um canto em que pudesse estar sozinha com os mesmos pensamentos que não mais a largariam desde esse dia em que brincava com o elástico de cabelo após tomar café sozinha.
Guardou o leite e o requeijão na geladeira e escovou os dentes, vestiu-se para trabalhar e recebeu uma mensagem em seu celular:
“01/04/2008. 10:25. Com o que você sonhou?”, as letras sobre o fundo azul remetiam à breve lua-de-mel sob o céu de Lisboa.
Ela sentou no sofá vermelho que comprara numa ponta de estoque e minutos depois no celular dele o desenho de um envelope que se abria mostrando o seguinte texto:
“01/04/2008. 10:37. Sonhei que eu deixava você”.
Ela pegou o elevador, sentindo-se escorregar numa poça de neve derretida.
O celular vibrou novamente.
“01/04/2008. 11:05. Não vou deixar que faça isso”.
E, tendo respondido sua mensagem, ele não mais pensou no sonho dela durante o resto do dia, como se tudo estivesse apenas em suas próprias mãos. Para ela, o mais difícil foi fingir que nada acontecia dentro de si mesma quando o que sentia era semelhante a estar rolando precipício abaixo.
Às oito e quarenta ele chegou em casa e acendeu a luz da sala. Tirou os sapatos e as meias pretas. Tirou a gravata e pensou que estava com sede. No celular, viu que havia outro envelope a ser aberto:
“01/04/2008. 19:19. Certezas me amedrontam”.
Ele procurou nas mensagens enviadas o que havia dito antes, mas não conseguiu entender o que ela pensava exatamente. Ligou pra ela, mas a ligação era encaminhada para a caixa de mensagens. Ligou outra vez e outra vez. Não ouvia sua voz desde aquela manhã.
Bebeu um copo de água gelada, pensando onde ela poderia estar àquela hora, o que fazia ou por que não havia ligado pra ele durante o dia inteiro. Por um momento teve medo de ser tudo um sonho apenas. Pensou se aquilo já era sofrer.
Pegou no chão o elástico de cabelo arrebentado que ela usava pela manhã.
Ele mexia no elástico remendando-o como a um fio rebelde numa roupa nova, quando as chaves dela balançavam na fechadura, abrindo a porta de entrada. Nesse momento, lembrou-se que ela iria visitar uma amiga. Nesse momento, ela percebeu que sentia falta da voz dele lhe dizendo qualquer coisa e não sabia o que fazer com aquela saudade.
Ele disse, quer comer alguma coisa? E ela sentiu um alívio tão grande que o beijou demoradamente.
E naquela noite, na primeira noite após a lua-de-mel, depois de um dia inteiro separados um do outro, sem ter certeza de quase nada e no meio de uma avalanche de temores, perplexidades e incongruências, os dois se beijaram e se amaram até o amanhecer. E perceberam que isso apenas bastava.
Texto por Danielle Costa.