08/03/2010

avalanche

avalanche foi criada para o blog Caneta, Lente e Pincel tornando-se uma peça com o texto de Danielle Costa.


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“Tive um sonho estranho essa noite. Quer ouvir?”, ela disse titubeante, insegura já no seu primeiro gesto daquela manhã de segunda-feira.

“Quero, sim, amor, com certeza”, ele respondeu dando-lhe um beijo suave, “mas não posso agora, preciso sair correndo pro trabalho”, continuou enquanto bebia rapidamente um gole de café com leite.

Eram recém casados. Ela ainda se esforçava para parecer interessante, olhava pra ele, fingindo estar desvendando algo desconhecido até dele próprio. Contudo, ignorava que esses gestos passavam despercebidos e eram vistos por ele como um peculiar jeito de ser. Já eram tão rotineiros que ele nem imaginava que ela fazia qualquer esforço para agir assim. Ele, por sua vez, tentava acreditar que pouca coisa havia mudado naquelas primeiras semanas de casamento.

“Depois do trabalho vou visitar uma amiga”, ela disse desinteressadamente.

“Bem, posso pegar você a hora que quiser”, ele, saindo, completou, “me liga durante o dia”.

Ela ainda ficou algum tempo vivenciando a sensação de estarem juntos. Hoje, particularmente, ele parecia muito à vontade com o fato de estar casado. À vontade demais, ela pensava, tentando encontrar nele ao menos alguma parcela do esforço que ela própria fazia para surpreendê-lo.

Seus dedos brincavam com um elástico de cabelo, e sua imaginação esticava o tempo como ela fazia com aquele pequeno objeto em suas mãos. Pensou no sonho da noite anterior e na sensação de ausência de identidade que tivera ao acordar. E aquele pensamento desencadeou uma avalanche em sua cabeça. Pensava em quanto tempo seria preciso para aquele elástico arrebentar. Teve medo de viver um dia igual ao outro, igual ao outro e igual ao outro, todos os dias seguintes de sua vida até que ela própria arrebentasse, assim como o elástico. Pensou em seus amigos e que seus amigos sumiriam, dando lugar à privacidade de sua vida de casada. Teve medo do telefone não tocar. E nenhum amigo mais chamá-la pra sair. Teve pavor de uma solidão que não sabia de onde vinha porque estava cercada de pessoas, no trabalho, na família, filhos que teria após um ou dois anos de casada. Teve medo de tudo dar errado. Via-se andando de um lado pro outro no pequeno apartamento, tentando arrumar um canto em que pudesse estar sozinha com os mesmos pensamentos que não mais a largariam desde esse dia em que brincava com o elástico de cabelo após tomar café sozinha.

Guardou o leite e o requeijão na geladeira e escovou os dentes, vestiu-se para trabalhar e recebeu uma mensagem em seu celular:

“01/04/2008. 10:25. Com o que você sonhou?”, as letras sobre o fundo azul remetiam à breve lua-de-mel sob o céu de Lisboa.

Ela sentou no sofá vermelho que comprara numa ponta de estoque e minutos depois no celular dele o desenho de um envelope que se abria mostrando o seguinte texto:

“01/04/2008. 10:37. Sonhei que eu deixava você”.

Ela pegou o elevador, sentindo-se escorregar numa poça de neve derretida.

O celular vibrou novamente.

“01/04/2008. 11:05. Não vou deixar que faça isso”.

E, tendo respondido sua mensagem, ele não mais pensou no sonho dela durante o resto do dia, como se tudo estivesse apenas em suas próprias mãos. Para ela, o mais difícil foi fingir que nada acontecia dentro de si mesma quando o que sentia era semelhante a estar rolando precipício abaixo.

Às oito e quarenta ele chegou em casa e acendeu a luz da sala. Tirou os sapatos e as meias pretas. Tirou a gravata e pensou que estava com sede. No celular, viu que havia outro envelope a ser aberto:

“01/04/2008. 19:19. Certezas me amedrontam”.

Ele procurou nas mensagens enviadas o que havia dito antes, mas não conseguiu entender o que ela pensava exatamente. Ligou pra ela, mas a ligação era encaminhada para a caixa de mensagens. Ligou outra vez e outra vez. Não ouvia sua voz desde aquela manhã.

Bebeu um copo de água gelada, pensando onde ela poderia estar àquela hora, o que fazia ou por que não havia ligado pra ele durante o dia inteiro. Por um momento teve medo de ser tudo um sonho apenas. Pensou se aquilo já era sofrer.

Pegou no chão o elástico de cabelo arrebentado que ela usava pela manhã.

Ele mexia no elástico remendando-o como a um fio rebelde numa roupa nova, quando as chaves dela balançavam na fechadura, abrindo a porta de entrada. Nesse momento, lembrou-se que ela iria visitar uma amiga. Nesse momento, ela percebeu que sentia falta da voz dele lhe dizendo qualquer coisa e não sabia o que fazer com aquela saudade.

Ele disse, quer comer alguma coisa? E ela sentiu um alívio tão grande que o beijou demoradamente.

E naquela noite, na primeira noite após a lua-de-mel, depois de um dia inteiro separados um do outro, sem ter certeza de quase nada e no meio de uma avalanche de temores, perplexidades e incongruências, os dois se beijaram e se amaram até o amanhecer. E perceberam que isso apenas bastava.

Texto por Danielle Costa.

04/03/2010

Ardências

Ardências foi criada para o blog Caneta, Lente e Pincel tornando-se uma peça com o texto de Vivian Pizzinga.

É feita sobre um texto (resultando irreconhecível) e live-electronics (filtros comb, delays e RM). Após o live-electronics, foram utilizados duas RM com frequências móveis.


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A moça estava deitada na cama. Fitava o não-sei-onde mais acima, rodeada de não-sei-quantos por todos os lados. O que havia perto de si – embora ela não conseguisse visualizar bem onde, nem atinar ao certo o porquê – era um multidãozinha de pequenos elementos pretos, que se reunia de modo caótico para quem olhava de fora, de cima e de viés. A diminuta aglomeração discutia aquilo que a moça não conseguia compreender nem plena nem parcialmente. Eram formigas, talvez. Piolhos, quem sabe. Joaninhas desprovidas de bolinhas, possivelmente. Eram insetos eloqüentes, com toda a certeza. Encontravam-se ao pé da cama, onde a moça, deitada, tentava esquecer o que comprimia suas têmporas. A dor de cabeça aumentava e era quase uma enxaqueca, porque a multidãozinha intensificava seu furor, numa relação diretamente proporcional ao incremento da dor. Aqueles bichos escuros discutiam acerca de matérias improvisadas que a moça nunca adivinharia.

O furor era crescente, pois havia discordância, dissonância, discrepância. A moça abriu os olhos na sombra do quarto lacrado com cortinas e portas bem cerradas. Virou-se para o lado, disfarçadamente, e enxergou o chão. O que antes era carpete bege e macio agora estava coberto de negror e aspereza. Eram milhões de formigas alvoroçadas, gritando em suas vozes agudas e perturbadoras, e quanto mais elas debatiam, e quanto mais suas patas se moviam, e quanto mais o chão brilhava, mais as têmporas da moça achatavam seu rosto, que agora se tornava fino e oblongo.

A verdade é que a moça não queria saber dos assuntos alheios, não queria saber das idéias próprias, e tampouco que dia era aquele. Estava cansada e aflita por saber-se povoada em seu próprio quarto, sem contar que o odor proveniente da sonoridade das formigas era algo da ordem do nojento. Dor, odor e som misturavam-se e retorciam-se, e a enxaqueca era agora uma parede compacta que extraía os pensamentos da moça em desespero em desalinho em desconforto.

A moça tentava encontrar uma posição. As formigas ovais percutiam o chão, a moça sentia as pancadas das opiniões desarranjadas que iam perfurando seus tímpanos, os insetos moviam-se pra lá e pra cá e era pra lá e pra cá que a moça não conseguia inserir-se na cama e já os insetos posicionavam-se de modo belicoso e já a moça puxava o lençol e os insetos estavam nervosos a moça estava pra morrer os insetos eram agora urgentes a moça sabia-se solta os insetos chegavam a um consenso a moça rolava no próprio suor os insetos construíram um dispositivo ininteligível a moça escutava as marteladas os insetos queriam mais a moça escutava as marteladas a moça reprimiu um berro a moça escutava as navalhadas os insetos aplaudiram os insetos ovacionaram os insetos vibraram a moça suspirou os insetos acalmaram-se a moça alarmou-se os insetos esperavam a moça deslizou em sua ardência e a ardência aumentou ainda mais a ardência fez queimar os tendões da moça e o juízo dos insetos a moça chorou ardências incontáveis incontestes inquietas e intranqüilas ardências tomaram conta de seu corpo inteiro de seu corpo incerto de seu corpo imerso em insetos ensopados de saliva cuspe saliva cuspe os insetos a moça os insetos a moça a moça a moça ardia a moça, A moça virou-se para o lado, ardia o lado, ardia a cama, e tacou o travesseiro sobressalente sobre a cabeça que era agora um cilindro frágil e disforme, apertou os olhos no intuito de apalpar a escuridão e esperou que as formigas fossem embora. As ardências escorreram para fora da cama e quicaram pra longe.

As formigas – ou piolhos - ou baratas - ou besouros - ou traças - ou joaninhas sem bolinhas – ou marimbondos enfezados - fizeram o sinal da cruz, ordenaram-se em fila, calaram a boca e foram embora. E tudo isso sem olhar para trás.

Texto: Vivian Pizzinga.

03/03/2010

Culpado?

Culpado? foi criada para o blog Caneta, Lente e Pincel tornando-se uma peça com o texto de Renato Amado.

É feita com gravações de sons em directo de ensaios com o grupo de dança-teatro "Ar-Cênico". A peça que eles estavam montando era sobre personagens femininos de Nelson Rodrigues.
Após a gravação, os sons foram organizados e manipulados por mudança de "pitch", criando cantos através de choros.
Também foi utilizado pedaços de uma música de Astor Piazzolla, manipulada com RM.


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Culpado?

Diversos motivos podem levar um homem ao suicídio. O mais comum é a tristeza e diversos motivos podem levar à tristeza. Seu filho matar sua esposa é um deles. Você matar seu filho e sua esposa e depois se arrepender é outro. Perder quem se julga ser o amor da vida também é uma das hipóteses mais comuns.

Há até quem se mate sem triste estar. Tal hipótese já foi registrada na literatura, embora não apenas nela ocorra. Como sabemos, a ficção imita a realidade. Saint-Amour, personagem de Gabriel Garcia Marquez, em Amor nos Tempos do Cólera, se mata porque quando era um homem de meia idade decidiu: “não ficarei velho”, portanto, não passaria dos sessenta anos. Ficou cabisbaixo quando teve que suicidar-se para cumprir a promessa, afinal, realmente aproveitava a vida.

No caso deste senhor aqui sentado, ninguém sabe o que o levou a buscar o fim de sua vida. Apenas ele, que insiste em mentir. Ele alega que estava sonâmbulo, mas os peritos garantem que não há sonambulismo capaz de fazer o cidadão sair de casa, pegar um táxi, saltar onde deseja, pagar e entrar no mar. Mas ele jura que estava sonâmbulo, que ia atrás de cantos de baleias. Diz que estar de pijamas prova isso, embora saibamos que este foi um truque premeditado para afastar sua culpabilidade. Segundo alega, por algum motivo em seu delírio sonâmbulo ele precisava ir atrás de baleias que se encontravam na altura do Posto 9. Era necessário alcançá-las. Sabia disso no sonho, não havia uma razão específica, mas precisava buscá-las. Entrou no mar, encontrou as baleias que, na sua linguagem gutural - no sonho compreendida pelo seu protagonista - disseram que ele precisava seguir vozes que vinham das Ilhas Cagarras. Para lá se pôs a nadar – no sonho e na vida real. Eis que passou um barco com um casal. Uma embarcação do pecado, é verdade, já que ambos eram casados com pessoas outras, mas como sabemos, um ilícito não anula o outro e, desde há muito tempo, tal não é razão para que se dê cabo da vida de alguém. Ao ver aquele homem nadando por ali, certamente querendo suicidar-se, o barqueiro, solidário, puxou-o para seu pequeno barco. Solidário, eu disse, ele fez isso por compaixão. Compaixão essa não retribuída. Ao contrário, vingada como se tivesse sido feito algum mal. Perguntado o que fazia ali, o suposto sonâmbulo diz ter respondido que precisava chegar às Ilhas Cagarras. O navegador, um pescador em momento de folga, sem dúvida não acreditou, afinal, alguém nadando a muitos metros da costa, naquele horário, só poderia pretender matar-se. O inusitado visitante, contudo, insistia que queria ir às Cagarras. O pescador, ainda com o membro em riste, embora encoberto, por ter sido obrigado a parar suas ocupações pela metade, falou que o levaria de volta para terra. O homem, então, esbofeteou-o e o jogou no mar, assim como a mulher, segundo alega, também sonâmbulo, pois em sua alucinação, via-os como inimigos, ligados à Yakusa, dispostos a impedi-lo, a qualquer custo, de seguir as vozes das Ilhas Cagarras. Os corpos até hoje não foram encontrados.

Seguiu até as Cagarras, onde procurou um lugar mais protegido, uma pequena enseada, lançou âncora e nadou até uma das ilhas, onde diz ter passado a seguir as vozes que, então, podia escutar. Caminhou em busca delas, mas nunca as encontrou. De súbito, despertou, e em poucos segundos percebeu que efetivamente estava no lugar com o qual sonhara. Voltou para onde deixara a traineira e retornou a Ipanema. Pegou um táxi e foi para casa.

Francamente, senhores, é possível crer que este homem dormia, que fez tudo isso tomado por um delírio sonâmbulo? Evidentemente que não. Resta claro, portanto, que ele desejava dar cabo de sua vida, mas arrependeu-se ao ver o barco que o salvaria. Nele havia uma bonita mulher. Não resistindo, matou seu concubino e estuprou-a, estou convicto. Não querendo se ver incriminado, assassinou-a também. É claro, senhor jurados, que esta é a verdade dos fatos, ele sequer foi até as Ilhas Cagarras, não há qualquer evidência. Peço, portanto, que o declarem culpado.

Nada mais a acrescentar, Meritíssimo.

Texto por Renato Amado.

Ouvir o Cinema

Ouvir o Cinema


Entrelaçar o cinema mudo com a música contemporânea feita com computador é o principal objectivo deste projecto.
São apresentadas curtas-metragens mudas com ambientação sonora por improvisação orientada (em directo), utilizando computador, softwares livres e a manipulação sonora em tempo real.

O objectivo do projecto é difundir a música electroacústica e o cinema de arte (e poesia contemporânea), utilizando as suas proximidades estéticas e técnicas, bem como as possibilidades de simultaneidade, fundindo-os.

Amostras de apresentações já realizadas:

Ballet Méchanique
Realizador: Fernand Leger
Ambientação sonora: Gilson Beck
Gravação em directo em 24 de Maio de 2008.



Lines Horizontal
Realizador: Norman Mclaren
Ambientação sonora: Gilson Beck
Gravação em directo em 24 de Maio de 2008.