Passou o dinheiro por debaixo da grade. A moça lhe entregou o bilhete. O próximo trem só chegava em duas horas, e ela definitivamente não estava muito confortável consigo mesma para esperar sozinha com seus próprios pensamentos. Talvez devesse ter levado um livro. Talvez não devesse ter saído só com a roupa do corpo e a pequena mala colorida. Aquela mala, que já tinha estado em tantas estações e aeroportos nos últimos seis anos, desde que ele lhe dera de presente, na primeira viagem que fizeram juntos, ao sul do Lago Vermelho. Lembraria com tristeza das viagens que fizeram juntos. Do quanto se divertiram, dos restaurantes em que jantaram. Do passeio a cavalo que fizeram nas Altas Pradarias. Do voo de parapente nas Grandes Falésias. Voo que ela não teria feito se não fosse a insistência dele. Logo ela, que era destemida e gostava de aventuras. Mas na hora em que viu os homens se preparando para voar, na beira do precipício, amarelou. Logo ela. Precisou que um homem – o seu homem – disse que sim, vamos agora. Quanto ela não tinha precisado que ele dissesse que sim. Ou que não. Até mesmo um talvez ela precisava ouvir dele. Tinha passado seis anos precisando que ele desse as diretrizes da sua vida.
Não estava gostando muito de ter que esperar duas horas com esses pensamentos. Um menino ofereceu-se para carregar sua mala. Ela agradeceu, mas, por mais ridículo que fosse, era um pouco simbólico que não se desgrudasse da mala, daquela mala. Era necessário carregá-la ela mesma, pois ela mesma estava deixando tudo pra trás.
Sentiria falta dos vinhos que tomaram juntos e dos queijos que comeram nas noites geladas do inverno de dezembro. Sentiria falta do cachorro que adotaram juntos – mas não poderia mesmo ter levado o cachorro. Precisava deixar tudo, tudo o que fosse em comum, deixar tudo para trás, ali naquela cidade fantasma. Também ia sentir falta do dia da mudança para a cidade fantasma. Mesmo que da cidade em si não fosse sentir falta nenhuma. Ela, que sempre fora uma pessoa de cidade grande, mas que se deixara convencer a viver em uma cidade pequena, muito pequena. Vai ser melhor pra gente, ele disse. Vamos conseguir trabalhar mais, focar mais no nosso trabalho, ele argumentou. Ela achou na época que ele estivesse pensando nela. Mas fato é que não estava, ele pensava nele, só nele, no que seria melhor pra ele. E naquele momento não tinha nem pensado que ela não gostava da vida em uma cidade do interior. Ela gostava de carros, engarrafamento, barulho, luzes. Mas ela fora mesmo assim. Por amor. Por necessidade. Ou por apego. E depois de três anos em uma cidade fantasma, ela também havia se tornado um fantasma. Um zumbi, um algo que era entre ela e ele, mas bem mais distante dela.
Viu um casalzinho jovem, possivelmente recém-casado, beijarem-se debaixo do letreiro luminoso que sinalizava a direção do banheiro. Pensou que ela e ele um dia já tinham sido como esse casal que ela agora invejava, e de quem também agora tinha pena. O destino dos relacionamentos é a merda. Disso ela tinha certeza.
Quando o autofalante anunciou a chegada do trem à estação, ela se deu conta de que já tinham passado os cento e vinte minutos de espera, e de que não tinha sido nem tão ruim ficar sozinha com ela mesma. Era triste abandoná-lo, abandonar tudo. Mas era necessário. Seu vagão parou na plataforma, ela acomodou-se no assento reservado. A seu lado, um menino de uns dezenove anos, vindo de alguma estação anterior, ouvia música com fones de ouvido, ainda que estivesse tão alta que desse para ela saber exatamente qual era a música que tocava. Ela o olhou com atenção, mas ele não reparou nela. Ele deve ser de alguma metrópole, pensou, por causa da música eletrônica que conseguia ouvir. Lembrou do dia em que foram, ela e ele, ao Auf Aller Welt, uma boate de música eletrônica daquela cidade alemã. Lembrou do quanto estavam em sintonia naquela época, e do quanto odiaram as músicas, e do quão correndo foram embora de lá, às gargalhadas. As lembranças lhe deram um pouco de tristeza. Olhou para suas mãos e percebeu que a unha do indicador direito ainda estava suja de sangue. Do sangue que ele vomitara um pouco depois de beber o veneno que ela colocara em seu copo de uísque.
E enquanto a locomotiva partia, pensou que se aquilo tudo fosse o Velho Oeste, fariam pra ele uma cerimônia indígena de morte – ou de passagem, como achava que os índios deveriam dizer. Olhou para a janela e viu o infinito descampado da paisagem. A música ambiente que tocava no vagão se misturou à música que saía dos fones de ouvido do garoto ao lado. E o sol de fim de tarde misturou-se ao frio que fazia. Ela imaginou – e chegou até mesmo a ver – uma roda de índios vestidos como americanos-nativos em torno dele, queimando o corpo e cantando músicas de amansar espíritos.
Relaxou as pernas e esticou os pés, enquanto a fumaça da locomotiva rasgou o ar gélido e claro da cidade fantasma.
Texto de Maíra Fernandes de Melo
"Neste mês celebramos um ano de Caneta, Lente & Pincel. Por isso, resolvemos fazer uma brincadeira. Se nosso conceito é produzirmos obras de arte inspiradas umas nas outras, nesta rodada potencializamos isso, de modo que a obra que inspira um texto é também inspirada numa imagem, numa pintura rupestre, a obra primeva. Veremos, no século XXI, surgirem na internet diferentes consequências artística daquilo que foi produzido na infância da humanidade. Obras de arte não só são eternas, como continuam produzindo efeitos. Curta as diferentes leituras feitas por nossos colaboradores."
18/04/2010
A CIDADE FANTASMA
A CIDADE FANTASMA foi criada para o blog Caneta, Lente e Pincel tornando-se uma peça com o texto de Maíra Fernandes de Melo.
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