03/03/2010

Culpado?

Culpado? foi criada para o blog Caneta, Lente e Pincel tornando-se uma peça com o texto de Renato Amado.

É feita com gravações de sons em directo de ensaios com o grupo de dança-teatro "Ar-Cênico". A peça que eles estavam montando era sobre personagens femininos de Nelson Rodrigues.
Após a gravação, os sons foram organizados e manipulados por mudança de "pitch", criando cantos através de choros.
Também foi utilizado pedaços de uma música de Astor Piazzolla, manipulada com RM.


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Culpado?

Diversos motivos podem levar um homem ao suicídio. O mais comum é a tristeza e diversos motivos podem levar à tristeza. Seu filho matar sua esposa é um deles. Você matar seu filho e sua esposa e depois se arrepender é outro. Perder quem se julga ser o amor da vida também é uma das hipóteses mais comuns.

Há até quem se mate sem triste estar. Tal hipótese já foi registrada na literatura, embora não apenas nela ocorra. Como sabemos, a ficção imita a realidade. Saint-Amour, personagem de Gabriel Garcia Marquez, em Amor nos Tempos do Cólera, se mata porque quando era um homem de meia idade decidiu: “não ficarei velho”, portanto, não passaria dos sessenta anos. Ficou cabisbaixo quando teve que suicidar-se para cumprir a promessa, afinal, realmente aproveitava a vida.

No caso deste senhor aqui sentado, ninguém sabe o que o levou a buscar o fim de sua vida. Apenas ele, que insiste em mentir. Ele alega que estava sonâmbulo, mas os peritos garantem que não há sonambulismo capaz de fazer o cidadão sair de casa, pegar um táxi, saltar onde deseja, pagar e entrar no mar. Mas ele jura que estava sonâmbulo, que ia atrás de cantos de baleias. Diz que estar de pijamas prova isso, embora saibamos que este foi um truque premeditado para afastar sua culpabilidade. Segundo alega, por algum motivo em seu delírio sonâmbulo ele precisava ir atrás de baleias que se encontravam na altura do Posto 9. Era necessário alcançá-las. Sabia disso no sonho, não havia uma razão específica, mas precisava buscá-las. Entrou no mar, encontrou as baleias que, na sua linguagem gutural - no sonho compreendida pelo seu protagonista - disseram que ele precisava seguir vozes que vinham das Ilhas Cagarras. Para lá se pôs a nadar – no sonho e na vida real. Eis que passou um barco com um casal. Uma embarcação do pecado, é verdade, já que ambos eram casados com pessoas outras, mas como sabemos, um ilícito não anula o outro e, desde há muito tempo, tal não é razão para que se dê cabo da vida de alguém. Ao ver aquele homem nadando por ali, certamente querendo suicidar-se, o barqueiro, solidário, puxou-o para seu pequeno barco. Solidário, eu disse, ele fez isso por compaixão. Compaixão essa não retribuída. Ao contrário, vingada como se tivesse sido feito algum mal. Perguntado o que fazia ali, o suposto sonâmbulo diz ter respondido que precisava chegar às Ilhas Cagarras. O navegador, um pescador em momento de folga, sem dúvida não acreditou, afinal, alguém nadando a muitos metros da costa, naquele horário, só poderia pretender matar-se. O inusitado visitante, contudo, insistia que queria ir às Cagarras. O pescador, ainda com o membro em riste, embora encoberto, por ter sido obrigado a parar suas ocupações pela metade, falou que o levaria de volta para terra. O homem, então, esbofeteou-o e o jogou no mar, assim como a mulher, segundo alega, também sonâmbulo, pois em sua alucinação, via-os como inimigos, ligados à Yakusa, dispostos a impedi-lo, a qualquer custo, de seguir as vozes das Ilhas Cagarras. Os corpos até hoje não foram encontrados.

Seguiu até as Cagarras, onde procurou um lugar mais protegido, uma pequena enseada, lançou âncora e nadou até uma das ilhas, onde diz ter passado a seguir as vozes que, então, podia escutar. Caminhou em busca delas, mas nunca as encontrou. De súbito, despertou, e em poucos segundos percebeu que efetivamente estava no lugar com o qual sonhara. Voltou para onde deixara a traineira e retornou a Ipanema. Pegou um táxi e foi para casa.

Francamente, senhores, é possível crer que este homem dormia, que fez tudo isso tomado por um delírio sonâmbulo? Evidentemente que não. Resta claro, portanto, que ele desejava dar cabo de sua vida, mas arrependeu-se ao ver o barco que o salvaria. Nele havia uma bonita mulher. Não resistindo, matou seu concubino e estuprou-a, estou convicto. Não querendo se ver incriminado, assassinou-a também. É claro, senhor jurados, que esta é a verdade dos fatos, ele sequer foi até as Ilhas Cagarras, não há qualquer evidência. Peço, portanto, que o declarem culpado.

Nada mais a acrescentar, Meritíssimo.

Texto por Renato Amado.

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