28/11/2010

As Esponjas e as Bactérias

As Esponjas e as Bactérias foi criada para uma rodada do blogue Caneta, Lente e Pincel tornando-se uma peça com o texto de Maíra Fernandes de Melo.


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Os cientistas ainda não sabem se o universo é infinito ou só incomensurável. O próprio universo que conhecemos – quer dizer, que os cientistas conhecem – pode conter milhares de outros universos e está sempre se expandindo.

O que vemos no universo quando olhamos para o alto ou vamos a um planetário nada mais é do que o que estava ali há 14 bilhões de anos. O que vemos ali agora está na verdade a uma distância muito maior de nós, ou até já nem existe, ou já virou outra coisa...

Como todo mundo aprendeu na escola, a nossa galáxia é a Via Láctea, e o nosso sistema é o Sistema Solar. Mais do que isso, nós, que não somos cientistas, provavelmente nunca vamos ficar sabendo. Dizem eles – os cientistas – que, por causa da forma como as galáxias se aglomeram e se distribuem, o universo tem a aparência de uma célula. A vida na Terra também nada mais é do que um aglomerado de células. A célula é a menor porção da matéria viva. Da vida em si.

No corpo de todos os organismos, as células, assim como o universo, estão sempre em movimento. Uma célula morre, não sem antes dar suas informações genéticas para a próxima célula que virá. Assim, o corpo continua funcionando e a gente continua vivo. Há quem diga – de novo, os cientistas – que de sete em sete anos todas as células do corpo de um ser humano terão morrido e dado lugar a novas células. É a chamada renovação celular. De sete em sete anos seríamos pessoas completamente diferentes, mas com a mesma informação genética. Não sei se isso é verdade, mas até que faz sentido. Se não me engano (não sou muito religiosa...), o budismo tem ciclos de sete em sete anos. A astrologia também. Sete, catorze, vinte e um, vinte e oito. Não comprava muito essa coisa da astrologia não, mas agora que fiquei sabendo que os cientistas também acreditam em ciclos de sete, tô fodida. O Retorno de Saturno tá chegando pra mim.

Mas não era nada disso que eu queria dizer. Falei isso tudo só pra vocês entenderem do que eu quero falar. O que eu queria dizer é que a morte – ela, sempre ela – tem tudo a ver com o envelhecimento celular. Quando você estiver no décimo segundo ciclo de sete, com 84 anos, as suas células vão passar para as que vierem no lugar delas a informação genética de que você está ficando velho. Daí pra frente, menino, é ladeira abaixo. Mas isso obviamente se você – ou eu – não morrer antes, de alguma doença ou trauma que degenere ou interrompa o processo celular do seu corpo. Tantas possibilidades, tantos medos, quando na verdade é tudo bem simples: doença, trauma ou envelhecimento celular. São só três as formas de morrer.

Sete bilhões de pessoas no mundo. Sem contar o crescimento demográfico dos próximos ciclos de sete. Sem contar também a preferência por organismos humanos do sexo masculino na China. Ou o equilíbrio populacional que as guerras empreendem. Nada disso interessa. O que interessa é que todas as multidões do planeta, aquelas que se aglomeram esperando o sinal abrir para os pedestres, na Rio Branco ou na Quinta Avenida, todas as pessoas só têm três formas de morrer. Se elas morrerem na rua, na cama de casa ou na maca do hospital, eletrodos ligados ao corpo e o piiii daquela maquininha, quando o gráfico vira linha reta e o médico anuncia a hora da morte pra botar no atestado de óbito, não interessa. Fato é que teremos morrido de uma das apenas três maneiras de morrer.

A parte boa – se é que existe alguma parte boa nisso – é que há organismos no planeta, em meio a toda a diversidade existente, que não ficam velhos. É verdade. Isso também são eles – os cientistas – que dizem. As bactérias, por exemplo, duplicam suas células a cada vinte minutos. Se houver condições suficientes (alimentação, ambiente propício e tal), elas não envelhecem nunca. As células das bactérias vão sempre se reproduzir e elas nunca vão morrer de velhice. As esponjas também. O envelhecimento celular das esponjas é quase nulo, muitas vezes nem dá pra ser detectado. O que significa que se não vier um tubarão para comê-las (e eu nem sei se tubarão come esponja) ou se elas não forem intoxicadas pelo óleo derramado por algum navio em alto-mar, as esponjas não morrem nunca. A mesma coisa com as bactérias. Se não houver um exército de antibióticos armado com fuzis para assassiná-las, as bactérias também não morrem.

É claro que na prática isso é quase impossível. Mais cedo ou mais tarde, dentro do tempo da Terra, eventualmente elas também vão ser atingidas por doenças ou traumas, e vão morrer. Não é que as esponjas e as bactérias sejam imortais. É só que, pra elas, só existem duas formas de morte, e não três. E era isso que eu queria dizer.

22/11/2010

«Prêmio Funarte de Composição Clássica»

Fui premiado no «Prêmio Funarte de Composição Clássica».
O concurso foi realizado para selecção de obras para a 19ª Bienal de Música Brasileira Contemporânea.
Das 384 obras inscritas, 59 foram seleccionadas para serem executadas durante a Bienal, no segundo semestre de 2011. Uma das 59 foi a minha.

A peça chama-se «No Leito do Aqueronte», escrita para quarteto de cordas e concorreu na categoria «conjuntos de câmara de 04 a 10 instrumentos».
O anúncio saiu no site da Funarte.

17/11/2010

Caneta, Lente e Pincel - 1 Ano

Entrevista sobre a comemoração de 1 ano do blogue Caneta, Lente e Pincel, por Renato Amado à Rádio MEC.

22/10/2010

Escritório

Escritório foi criada para uma rodada do blogue Caneta, Lente e Pincel tornando-se uma peça com o texto de Igor Dias.


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Esse barulhinho cotidiano
de passos, de máquina de escrever,
de janelas batendo sem querer
ou de trovão, é, sem qualquer engano,

uma angústia torta do ser humano,
que se fia nele sem perceber,
mas de um jeito estranho, sem o poder
que se costuma atribuir, e o plano

é, então, musicalizar as bossas,
empoderar esses surdos ruídos
pra que os tímpanos dos homens recebam

as catarses dos dias destruídos
na minúcia da rotina, e que sejam
felizes no curtir de suas fossas.

Música: Gilson Beck.
Texto: Igor Dias.

02/10/2010

Cibele

Cibele é um conto electroacústico criado para uma rodada do blogue Caneta, Lente e Pincel tornando-se uma peça com o texto de Fabiano Vianna.


A garota nua correu em direção ao beco e eu fui atrás. Sua pele alva contrastava com as paredes escuras abarrotadas de trepadeiras. Cabelos ruivos revoltos. A ruela era tão estreita que a luz que entrava por cima era extremamente escassa, tampada pelos imensos prédios. Apressei o passo para não perdê-la de vista, ora afastando galhos que se prendiam das paredes. Pistola armada com silenciador. O chão também era de musgo. Escorregadio pacas. Clima úmido como floresta. De vez em quando a garota olhava para trás para conferir se eu ainda estava. Começou a correr feito uma lebre. Tive que correr também. Odeio metamorfos. Já tinha a perdido outras vezes. Desta vez não podia falhar. Corria ligeiro, derrapando no limo. Tentei atirar. Feito gata, saltou numa escada de metal e subiu rapidamente. Fui atrás. Perdi alguns segundos. Músculos puxados – quase distendi. Quando olhei pra cima a vi chegando à cobertura. Fui de dois em dois, ofegante, até o topo. Meu pé de vez em quando falhava no lodo. Ultrapassei janelas de apartamentos abandonados. Cheiro de ar puro em céu aberto. Na cobertura, não encontrei ninguém. Nenhum sinal da ruiva fantasma. Apenas uma inofensiva borboleta vermelha voando entre os edifícios. Atirei. Caiu feito chumbo fazendo estrondo no beco. Olhei da ponta e vi a ruiva nua, morta, lá embaixo. Parecia pintura de Gustav Klimt. Corpinho branco e cabeleira vermelha. Um grande lago de sangue escuro sobre o manto verde. Tirei meu celular do bolso de dentro do paletó e fotografei. Enviei como anexo com a mensagem: Tá Feito! – a meu contratante.

18/08/2010

Nim'mera


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Nim'mera foi composta para o Grupo de Música Contemporânea da Universidade de Évora (Portugal), segundo a sua peculiar formação de guitarra, violino, flauta, clarinete, clarinete baixo, fagote, saxofone contralto, trompa, trompete e piano.

Feita com o objectivo de pesquisar a possibilidade de estruturação composicional na qual todas as partes se relacionem entre si, ou seja, todas as decisões e posicionamentos composicionais foram tomados tendo os mesmos elementos (quantitativos) como critérios.

É uma miniatura, com constantes retornos (rondó?). Linhas que se movem para um único ponto, onde ficam a saltitar.

02/08/2010

dobrado fibonacci

dobrado fibonacci foi criada para uma rodada do blog Caneta, Lente e Pincel tornando-se uma peça com o texto de Guilherme Preger.

É uma primeira experiência de relacionar texto e música não só nas questões de afecto, mas também no que diz respeito à estrutura.
O conjunto é feito a partir da frase "o desejo é partido". Esta frase é estruturada a partir da série de Fibonacci, com os elementos 1 2 1 1 3 (o-dese-jo-é-partido).
Na música, este elementos definem as durações dos sons e da estrutura formal, sendo 1=100ms, utilizando de ampliações (por exemplo 3+5+3+2+8=21 ou 8+13+8+5+21=55).
As sílabas da frase são o material sonoro matriz da música, que, manipulado com o ABT (ABeatTracker - REAME_ABT.txt) desenvolvido por Renato Fabbri, gera todos os sons da peça.


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o
dese
jo
é
partido

o
dese
jo
é
dobrado

os
olhos
que
se
defrontam

são
curva
dos
são
vazados

o
dese
jo
foi
vertido

no
olhar
dis
se
minado

o
dese
jo
in
vertido

o
olhar
diz-
se
minado

o
dese
jo
foi
perdido

o
olhar
foi
en
contrado

22/06/2010

Mais uma de Mary Jane

Mais uma de Mary Jane foi criada para uma rodada invertida do blog Caneta, Lente e Pincel tornando-se uma peça com o texto de Assionara Souza.

Mary Jane poderia seguramente pontuar uma dúzia de histórias que fertilizaram sua imaginação e fizeram com que cada vez mais ela se tornasse Mary Jane. Um dessas, sem dúvida, é a história de Nessie. As duas se conheceram numa noite quente de verão em que os adultos ficaram até tarde tentando sem muito sucesso se refrescar com todas as janelas abertas, umas doses de martini e a doce empáfia sonora em vertigem na agulha da vitrola. Quando todos se refestelavam, Mary Jane deitou-se no tapete embaixo da mesa e, com fones de ouvidos que a separavam do burburinho sensual dos mais velhos, concentrou-se em absorver os mais bizarros segredos da criptozoologia jamais exibidos na tv. Enquanto flagrava a metonímia das pernas num vai-e-vem frenético pela casa, seus pensamentos inundavam-se de toda a água do Loch Ness e os olhos mesclavam-se com as imagens insólitas de quando Nessie, dominada por uma solidão jurássica, subiu à superfície e deixou que o mundo tomasse conhecimento de sua existência. Trêmula e quase compulsiva, Mary Jane enquadrou sua polaroid no campo reluzente da Telefunken e registrou com emoção vibrante aquele momento histórico de sua morna adolescência.

Texto de Assionara Souza.



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08/06/2010

O Som de Dentro

O Som de Dentro foi criada para o blog Caneta, Lente e Pincel tornando-se uma peça com o texto de Ilana Reznik.


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Não é om, é tum. Repetidas vezes. O som primordial é este que está guardado em uma caixa de caber fogos de artifício. Ora estouros sucessivos, ora intervalos que mais parecem carretéis de lã. O barulho que dispara é o mesmo que diz pára, é o mesmo que vai para onde eu nem sempre consigo fotografar com uma palavra. O seu é tão metálico, que eu espero que não seja irreversível de doçura. Na tentativa de compreender seu ritmo, trago agora comigo uma mala cheia de ferramentas. Silêncio para que eu ouça. Não fala que eu te ausculto.

Texto de Ilana Reznik.

02/06/2010

DJ-Sets

Set de House francês misturado, em estilo MashUp, com Bossa-Nova, Samba e Fado.
(Gravado em 10/Jul/2012)

Setlist:
1. Deep In It (St. Germain) + Samba do Avião (Miucha e Tom Jobim)
2. Samba da Benção (Bebel Gilberto)
3. Last Dance @ Yellow (Laurent Garnier)
4. Thank U Mum (St. Germain) + Preciso me encontrar (Cartola)
5. Jack On The Groove (St. Germain) + Da Cor do Pecado (João Gilberto)
6. No Music, No Life (Laurent Garnier) + Estranha Forma de Vida (Amália Rodrigues)
7. My Mama Said (St. Germain) + Da Cor do Pecado (João Gilberto)


18/04/2010

A CIDADE FANTASMA

A CIDADE FANTASMA foi criada para o blog Caneta, Lente e Pincel tornando-se uma peça com o texto de Maíra Fernandes de Melo.


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Passou o dinheiro por debaixo da grade. A moça lhe entregou o bilhete. O próximo trem só chegava em duas horas, e ela definitivamente não estava muito confortável consigo mesma para esperar sozinha com seus próprios pensamentos. Talvez devesse ter levado um livro. Talvez não devesse ter saído só com a roupa do corpo e a pequena mala colorida. Aquela mala, que já tinha estado em tantas estações e aeroportos nos últimos seis anos, desde que ele lhe dera de presente, na primeira viagem que fizeram juntos, ao sul do Lago Vermelho. Lembraria com tristeza das viagens que fizeram juntos. Do quanto se divertiram, dos restaurantes em que jantaram. Do passeio a cavalo que fizeram nas Altas Pradarias. Do voo de parapente nas Grandes Falésias. Voo que ela não teria feito se não fosse a insistência dele. Logo ela, que era destemida e gostava de aventuras. Mas na hora em que viu os homens se preparando para voar, na beira do precipício, amarelou. Logo ela. Precisou que um homem – o seu homem – disse que sim, vamos agora. Quanto ela não tinha precisado que ele dissesse que sim. Ou que não. Até mesmo um talvez ela precisava ouvir dele. Tinha passado seis anos precisando que ele desse as diretrizes da sua vida.

Não estava gostando muito de ter que esperar duas horas com esses pensamentos. Um menino ofereceu-se para carregar sua mala. Ela agradeceu, mas, por mais ridículo que fosse, era um pouco simbólico que não se desgrudasse da mala, daquela mala. Era necessário carregá-la ela mesma, pois ela mesma estava deixando tudo pra trás.

Sentiria falta dos vinhos que tomaram juntos e dos queijos que comeram nas noites geladas do inverno de dezembro. Sentiria falta do cachorro que adotaram juntos – mas não poderia mesmo ter levado o cachorro. Precisava deixar tudo, tudo o que fosse em comum, deixar tudo para trás, ali naquela cidade fantasma. Também ia sentir falta do dia da mudança para a cidade fantasma. Mesmo que da cidade em si não fosse sentir falta nenhuma. Ela, que sempre fora uma pessoa de cidade grande, mas que se deixara convencer a viver em uma cidade pequena, muito pequena. Vai ser melhor pra gente, ele disse. Vamos conseguir trabalhar mais, focar mais no nosso trabalho, ele argumentou. Ela achou na época que ele estivesse pensando nela. Mas fato é que não estava, ele pensava nele, só nele, no que seria melhor pra ele. E naquele momento não tinha nem pensado que ela não gostava da vida em uma cidade do interior. Ela gostava de carros, engarrafamento, barulho, luzes. Mas ela fora mesmo assim. Por amor. Por necessidade. Ou por apego. E depois de três anos em uma cidade fantasma, ela também havia se tornado um fantasma. Um zumbi, um algo que era entre ela e ele, mas bem mais distante dela.

Viu um casalzinho jovem, possivelmente recém-casado, beijarem-se debaixo do letreiro luminoso que sinalizava a direção do banheiro. Pensou que ela e ele um dia já tinham sido como esse casal que ela agora invejava, e de quem também agora tinha pena. O destino dos relacionamentos é a merda. Disso ela tinha certeza.

Quando o autofalante anunciou a chegada do trem à estação, ela se deu conta de que já tinham passado os cento e vinte minutos de espera, e de que não tinha sido nem tão ruim ficar sozinha com ela mesma. Era triste abandoná-lo, abandonar tudo. Mas era necessário. Seu vagão parou na plataforma, ela acomodou-se no assento reservado. A seu lado, um menino de uns dezenove anos, vindo de alguma estação anterior, ouvia música com fones de ouvido, ainda que estivesse tão alta que desse para ela saber exatamente qual era a música que tocava. Ela o olhou com atenção, mas ele não reparou nela. Ele deve ser de alguma metrópole, pensou, por causa da música eletrônica que conseguia ouvir. Lembrou do dia em que foram, ela e ele, ao Auf Aller Welt, uma boate de música eletrônica daquela cidade alemã. Lembrou do quanto estavam em sintonia naquela época, e do quanto odiaram as músicas, e do quão correndo foram embora de lá, às gargalhadas. As lembranças lhe deram um pouco de tristeza. Olhou para suas mãos e percebeu que a unha do indicador direito ainda estava suja de sangue. Do sangue que ele vomitara um pouco depois de beber o veneno que ela colocara em seu copo de uísque.

E enquanto a locomotiva partia, pensou que se aquilo tudo fosse o Velho Oeste, fariam pra ele uma cerimônia indígena de morte – ou de passagem, como achava que os índios deveriam dizer. Olhou para a janela e viu o infinito descampado da paisagem. A música ambiente que tocava no vagão se misturou à música que saía dos fones de ouvido do garoto ao lado. E o sol de fim de tarde misturou-se ao frio que fazia. Ela imaginou – e chegou até mesmo a ver – uma roda de índios vestidos como americanos-nativos em torno dele, queimando o corpo e cantando músicas de amansar espíritos.

Relaxou as pernas e esticou os pés, enquanto a fumaça da locomotiva rasgou o ar gélido e claro da cidade fantasma.

Texto de Maíra Fernandes de Melo

"Neste mês celebramos um ano de Caneta, Lente & Pincel. Por isso, resolvemos fazer uma brincadeira. Se nosso conceito é produzirmos obras de arte inspiradas umas nas outras, nesta rodada potencializamos isso, de modo que a obra que inspira um texto é também inspirada numa imagem, numa pintura rupestre, a obra primeva. Veremos, no século XXI, surgirem na internet diferentes consequências artística daquilo que foi produzido na infância da humanidade. Obras de arte não só são eternas, como continuam produzindo efeitos. Curta as diferentes leituras feitas por nossos colaboradores."

08/03/2010

avalanche

avalanche foi criada para o blog Caneta, Lente e Pincel tornando-se uma peça com o texto de Danielle Costa.


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“Tive um sonho estranho essa noite. Quer ouvir?”, ela disse titubeante, insegura já no seu primeiro gesto daquela manhã de segunda-feira.

“Quero, sim, amor, com certeza”, ele respondeu dando-lhe um beijo suave, “mas não posso agora, preciso sair correndo pro trabalho”, continuou enquanto bebia rapidamente um gole de café com leite.

Eram recém casados. Ela ainda se esforçava para parecer interessante, olhava pra ele, fingindo estar desvendando algo desconhecido até dele próprio. Contudo, ignorava que esses gestos passavam despercebidos e eram vistos por ele como um peculiar jeito de ser. Já eram tão rotineiros que ele nem imaginava que ela fazia qualquer esforço para agir assim. Ele, por sua vez, tentava acreditar que pouca coisa havia mudado naquelas primeiras semanas de casamento.

“Depois do trabalho vou visitar uma amiga”, ela disse desinteressadamente.

“Bem, posso pegar você a hora que quiser”, ele, saindo, completou, “me liga durante o dia”.

Ela ainda ficou algum tempo vivenciando a sensação de estarem juntos. Hoje, particularmente, ele parecia muito à vontade com o fato de estar casado. À vontade demais, ela pensava, tentando encontrar nele ao menos alguma parcela do esforço que ela própria fazia para surpreendê-lo.

Seus dedos brincavam com um elástico de cabelo, e sua imaginação esticava o tempo como ela fazia com aquele pequeno objeto em suas mãos. Pensou no sonho da noite anterior e na sensação de ausência de identidade que tivera ao acordar. E aquele pensamento desencadeou uma avalanche em sua cabeça. Pensava em quanto tempo seria preciso para aquele elástico arrebentar. Teve medo de viver um dia igual ao outro, igual ao outro e igual ao outro, todos os dias seguintes de sua vida até que ela própria arrebentasse, assim como o elástico. Pensou em seus amigos e que seus amigos sumiriam, dando lugar à privacidade de sua vida de casada. Teve medo do telefone não tocar. E nenhum amigo mais chamá-la pra sair. Teve pavor de uma solidão que não sabia de onde vinha porque estava cercada de pessoas, no trabalho, na família, filhos que teria após um ou dois anos de casada. Teve medo de tudo dar errado. Via-se andando de um lado pro outro no pequeno apartamento, tentando arrumar um canto em que pudesse estar sozinha com os mesmos pensamentos que não mais a largariam desde esse dia em que brincava com o elástico de cabelo após tomar café sozinha.

Guardou o leite e o requeijão na geladeira e escovou os dentes, vestiu-se para trabalhar e recebeu uma mensagem em seu celular:

“01/04/2008. 10:25. Com o que você sonhou?”, as letras sobre o fundo azul remetiam à breve lua-de-mel sob o céu de Lisboa.

Ela sentou no sofá vermelho que comprara numa ponta de estoque e minutos depois no celular dele o desenho de um envelope que se abria mostrando o seguinte texto:

“01/04/2008. 10:37. Sonhei que eu deixava você”.

Ela pegou o elevador, sentindo-se escorregar numa poça de neve derretida.

O celular vibrou novamente.

“01/04/2008. 11:05. Não vou deixar que faça isso”.

E, tendo respondido sua mensagem, ele não mais pensou no sonho dela durante o resto do dia, como se tudo estivesse apenas em suas próprias mãos. Para ela, o mais difícil foi fingir que nada acontecia dentro de si mesma quando o que sentia era semelhante a estar rolando precipício abaixo.

Às oito e quarenta ele chegou em casa e acendeu a luz da sala. Tirou os sapatos e as meias pretas. Tirou a gravata e pensou que estava com sede. No celular, viu que havia outro envelope a ser aberto:

“01/04/2008. 19:19. Certezas me amedrontam”.

Ele procurou nas mensagens enviadas o que havia dito antes, mas não conseguiu entender o que ela pensava exatamente. Ligou pra ela, mas a ligação era encaminhada para a caixa de mensagens. Ligou outra vez e outra vez. Não ouvia sua voz desde aquela manhã.

Bebeu um copo de água gelada, pensando onde ela poderia estar àquela hora, o que fazia ou por que não havia ligado pra ele durante o dia inteiro. Por um momento teve medo de ser tudo um sonho apenas. Pensou se aquilo já era sofrer.

Pegou no chão o elástico de cabelo arrebentado que ela usava pela manhã.

Ele mexia no elástico remendando-o como a um fio rebelde numa roupa nova, quando as chaves dela balançavam na fechadura, abrindo a porta de entrada. Nesse momento, lembrou-se que ela iria visitar uma amiga. Nesse momento, ela percebeu que sentia falta da voz dele lhe dizendo qualquer coisa e não sabia o que fazer com aquela saudade.

Ele disse, quer comer alguma coisa? E ela sentiu um alívio tão grande que o beijou demoradamente.

E naquela noite, na primeira noite após a lua-de-mel, depois de um dia inteiro separados um do outro, sem ter certeza de quase nada e no meio de uma avalanche de temores, perplexidades e incongruências, os dois se beijaram e se amaram até o amanhecer. E perceberam que isso apenas bastava.

Texto por Danielle Costa.

04/03/2010

Ardências

Ardências foi criada para o blog Caneta, Lente e Pincel tornando-se uma peça com o texto de Vivian Pizzinga.

É feita sobre um texto (resultando irreconhecível) e live-electronics (filtros comb, delays e RM). Após o live-electronics, foram utilizados duas RM com frequências móveis.


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A moça estava deitada na cama. Fitava o não-sei-onde mais acima, rodeada de não-sei-quantos por todos os lados. O que havia perto de si – embora ela não conseguisse visualizar bem onde, nem atinar ao certo o porquê – era um multidãozinha de pequenos elementos pretos, que se reunia de modo caótico para quem olhava de fora, de cima e de viés. A diminuta aglomeração discutia aquilo que a moça não conseguia compreender nem plena nem parcialmente. Eram formigas, talvez. Piolhos, quem sabe. Joaninhas desprovidas de bolinhas, possivelmente. Eram insetos eloqüentes, com toda a certeza. Encontravam-se ao pé da cama, onde a moça, deitada, tentava esquecer o que comprimia suas têmporas. A dor de cabeça aumentava e era quase uma enxaqueca, porque a multidãozinha intensificava seu furor, numa relação diretamente proporcional ao incremento da dor. Aqueles bichos escuros discutiam acerca de matérias improvisadas que a moça nunca adivinharia.

O furor era crescente, pois havia discordância, dissonância, discrepância. A moça abriu os olhos na sombra do quarto lacrado com cortinas e portas bem cerradas. Virou-se para o lado, disfarçadamente, e enxergou o chão. O que antes era carpete bege e macio agora estava coberto de negror e aspereza. Eram milhões de formigas alvoroçadas, gritando em suas vozes agudas e perturbadoras, e quanto mais elas debatiam, e quanto mais suas patas se moviam, e quanto mais o chão brilhava, mais as têmporas da moça achatavam seu rosto, que agora se tornava fino e oblongo.

A verdade é que a moça não queria saber dos assuntos alheios, não queria saber das idéias próprias, e tampouco que dia era aquele. Estava cansada e aflita por saber-se povoada em seu próprio quarto, sem contar que o odor proveniente da sonoridade das formigas era algo da ordem do nojento. Dor, odor e som misturavam-se e retorciam-se, e a enxaqueca era agora uma parede compacta que extraía os pensamentos da moça em desespero em desalinho em desconforto.

A moça tentava encontrar uma posição. As formigas ovais percutiam o chão, a moça sentia as pancadas das opiniões desarranjadas que iam perfurando seus tímpanos, os insetos moviam-se pra lá e pra cá e era pra lá e pra cá que a moça não conseguia inserir-se na cama e já os insetos posicionavam-se de modo belicoso e já a moça puxava o lençol e os insetos estavam nervosos a moça estava pra morrer os insetos eram agora urgentes a moça sabia-se solta os insetos chegavam a um consenso a moça rolava no próprio suor os insetos construíram um dispositivo ininteligível a moça escutava as marteladas os insetos queriam mais a moça escutava as marteladas a moça reprimiu um berro a moça escutava as navalhadas os insetos aplaudiram os insetos ovacionaram os insetos vibraram a moça suspirou os insetos acalmaram-se a moça alarmou-se os insetos esperavam a moça deslizou em sua ardência e a ardência aumentou ainda mais a ardência fez queimar os tendões da moça e o juízo dos insetos a moça chorou ardências incontáveis incontestes inquietas e intranqüilas ardências tomaram conta de seu corpo inteiro de seu corpo incerto de seu corpo imerso em insetos ensopados de saliva cuspe saliva cuspe os insetos a moça os insetos a moça a moça a moça ardia a moça, A moça virou-se para o lado, ardia o lado, ardia a cama, e tacou o travesseiro sobressalente sobre a cabeça que era agora um cilindro frágil e disforme, apertou os olhos no intuito de apalpar a escuridão e esperou que as formigas fossem embora. As ardências escorreram para fora da cama e quicaram pra longe.

As formigas – ou piolhos - ou baratas - ou besouros - ou traças - ou joaninhas sem bolinhas – ou marimbondos enfezados - fizeram o sinal da cruz, ordenaram-se em fila, calaram a boca e foram embora. E tudo isso sem olhar para trás.

Texto: Vivian Pizzinga.

03/03/2010

Culpado?

Culpado? foi criada para o blog Caneta, Lente e Pincel tornando-se uma peça com o texto de Renato Amado.

É feita com gravações de sons em directo de ensaios com o grupo de dança-teatro "Ar-Cênico". A peça que eles estavam montando era sobre personagens femininos de Nelson Rodrigues.
Após a gravação, os sons foram organizados e manipulados por mudança de "pitch", criando cantos através de choros.
Também foi utilizado pedaços de uma música de Astor Piazzolla, manipulada com RM.


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Culpado?

Diversos motivos podem levar um homem ao suicídio. O mais comum é a tristeza e diversos motivos podem levar à tristeza. Seu filho matar sua esposa é um deles. Você matar seu filho e sua esposa e depois se arrepender é outro. Perder quem se julga ser o amor da vida também é uma das hipóteses mais comuns.

Há até quem se mate sem triste estar. Tal hipótese já foi registrada na literatura, embora não apenas nela ocorra. Como sabemos, a ficção imita a realidade. Saint-Amour, personagem de Gabriel Garcia Marquez, em Amor nos Tempos do Cólera, se mata porque quando era um homem de meia idade decidiu: “não ficarei velho”, portanto, não passaria dos sessenta anos. Ficou cabisbaixo quando teve que suicidar-se para cumprir a promessa, afinal, realmente aproveitava a vida.

No caso deste senhor aqui sentado, ninguém sabe o que o levou a buscar o fim de sua vida. Apenas ele, que insiste em mentir. Ele alega que estava sonâmbulo, mas os peritos garantem que não há sonambulismo capaz de fazer o cidadão sair de casa, pegar um táxi, saltar onde deseja, pagar e entrar no mar. Mas ele jura que estava sonâmbulo, que ia atrás de cantos de baleias. Diz que estar de pijamas prova isso, embora saibamos que este foi um truque premeditado para afastar sua culpabilidade. Segundo alega, por algum motivo em seu delírio sonâmbulo ele precisava ir atrás de baleias que se encontravam na altura do Posto 9. Era necessário alcançá-las. Sabia disso no sonho, não havia uma razão específica, mas precisava buscá-las. Entrou no mar, encontrou as baleias que, na sua linguagem gutural - no sonho compreendida pelo seu protagonista - disseram que ele precisava seguir vozes que vinham das Ilhas Cagarras. Para lá se pôs a nadar – no sonho e na vida real. Eis que passou um barco com um casal. Uma embarcação do pecado, é verdade, já que ambos eram casados com pessoas outras, mas como sabemos, um ilícito não anula o outro e, desde há muito tempo, tal não é razão para que se dê cabo da vida de alguém. Ao ver aquele homem nadando por ali, certamente querendo suicidar-se, o barqueiro, solidário, puxou-o para seu pequeno barco. Solidário, eu disse, ele fez isso por compaixão. Compaixão essa não retribuída. Ao contrário, vingada como se tivesse sido feito algum mal. Perguntado o que fazia ali, o suposto sonâmbulo diz ter respondido que precisava chegar às Ilhas Cagarras. O navegador, um pescador em momento de folga, sem dúvida não acreditou, afinal, alguém nadando a muitos metros da costa, naquele horário, só poderia pretender matar-se. O inusitado visitante, contudo, insistia que queria ir às Cagarras. O pescador, ainda com o membro em riste, embora encoberto, por ter sido obrigado a parar suas ocupações pela metade, falou que o levaria de volta para terra. O homem, então, esbofeteou-o e o jogou no mar, assim como a mulher, segundo alega, também sonâmbulo, pois em sua alucinação, via-os como inimigos, ligados à Yakusa, dispostos a impedi-lo, a qualquer custo, de seguir as vozes das Ilhas Cagarras. Os corpos até hoje não foram encontrados.

Seguiu até as Cagarras, onde procurou um lugar mais protegido, uma pequena enseada, lançou âncora e nadou até uma das ilhas, onde diz ter passado a seguir as vozes que, então, podia escutar. Caminhou em busca delas, mas nunca as encontrou. De súbito, despertou, e em poucos segundos percebeu que efetivamente estava no lugar com o qual sonhara. Voltou para onde deixara a traineira e retornou a Ipanema. Pegou um táxi e foi para casa.

Francamente, senhores, é possível crer que este homem dormia, que fez tudo isso tomado por um delírio sonâmbulo? Evidentemente que não. Resta claro, portanto, que ele desejava dar cabo de sua vida, mas arrependeu-se ao ver o barco que o salvaria. Nele havia uma bonita mulher. Não resistindo, matou seu concubino e estuprou-a, estou convicto. Não querendo se ver incriminado, assassinou-a também. É claro, senhor jurados, que esta é a verdade dos fatos, ele sequer foi até as Ilhas Cagarras, não há qualquer evidência. Peço, portanto, que o declarem culpado.

Nada mais a acrescentar, Meritíssimo.

Texto por Renato Amado.

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Entrelaçar o cinema mudo com a música contemporânea feita com computador é o principal objectivo deste projecto.
São apresentadas curtas-metragens mudas com ambientação sonora por improvisação orientada (em directo), utilizando computador, softwares livres e a manipulação sonora em tempo real.

O objectivo do projecto é difundir a música electroacústica e o cinema de arte (e poesia contemporânea), utilizando as suas proximidades estéticas e técnicas, bem como as possibilidades de simultaneidade, fundindo-os.

Amostras de apresentações já realizadas:

Ballet Méchanique
Realizador: Fernand Leger
Ambientação sonora: Gilson Beck
Gravação em directo em 24 de Maio de 2008.



Lines Horizontal
Realizador: Norman Mclaren
Ambientação sonora: Gilson Beck
Gravação em directo em 24 de Maio de 2008.

20/02/2010

Performances

Música de Câmara por
Improvisação Orientada

Concerto de Percussão, Piano e Electrónica (Tomar-Portugal)
Auditório da Biblioteca Municipal de Tomar - 25 de Maio de 2011.
Realização:
SFGP - Sociedade Filarmónica Gualdim Pais (Tomar-Portugal)
Apoio:
FAPEMIG - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais
UFU - Universidade Federal de Uberlândia
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Encontro "Percussão e Eletrônicos"
Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Concerto de percussão, piano e electrónica em tempo real, realizado como resultado das oficinas de percussão e eletrónicos do encontro.

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Improvisação de Música
Electrônica em Tempo Real

Um Chopin [2010/Nov]
PureData (PD) com sample da Balada nº 2 de F. Chopin

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Solitário [2008]
PureData (PD) e voz, sobre poema de Augusto dos Anjos

[mp3]

XVIII [2008]
PureData (PD) e voz, sobre poema de Hilda Hilst

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Dia da Experimentação Eletroacútica [2008/Abr/14]
PureData (PD), softwares livres diversos e samples. Duo de computadores com Renato Fabbri. Gravado ao vivo em concerto na Escola de Música Pró-Música em Campinas-SP/Brasil.



Música Electroacústica
com live-electronics

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Mostra de curtas-metragens mudas com ambientação sonora por improvisação orientada (em directo), utilizando computador, softwares livres e a manipulação sonora em tempo real.
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